3 de abril de 2012

O Direito, segundo as concepções de Hart

Na obra O conceito de direito Hart se enfrenta com o questionamento mais inquietante de toda e qualquer teoria jurídica, qual seja a pergunta que é o Direito? Segundo sua opinião, para encarar este questionamento é necessário saber: (1.º) em que se diferencia o Direito das ordens respaldadas por ameaças; (2.º) em que se distingue a obrigação jurídica da obrigação moral; (3.º) que são as normas jurídicas e, em que medida, o Direito é uma questão de normas. Em outras palavras, alguns dos problemas fundamentais da teoria jurídica encontram-se no âmbito das relações entre: o Direito e a coerção, o direito e a moral e o Direito e as normas.

Ao buscar dar uma resposta a estas questões, Hart desenvolve uma teoria do Direito com duas características fundamentais: (a) é geral, no sentido que busca explicar qualquer sistema jurídico vigente nas complexas sociedade contemporâneas. E, como bem adverte Cotterrell, “não resulta estranho que Hart se resista a qualquer tentativa [...] de definir ‘o Direito’ ou ‘um Direito’ e procure, em troca, um conceito de Direito que o conceba como um conjunto de práticas sociais” (Cotterrell, 1989, p. 92); e (b) é descritiva, posto que pretende elucidar a estrutura do Direito e o seu funcionamento sem considerar, deste modo, a justificação moral das práticas jurídicas analisadas.

Com base nestes alicerces, Hart crítica a teoria positivista elaborada por John Austin (cujas raízes se remontam a Jeramy Bentham) que delimitou os pilares do positivismo inglês na separação categórica entre o Direito que é e o Direito que deve ser e na insistência de que os fundamentos de um sistema jurídico não devem ser buscados em nenhuma teoria moral ou justificativa. Dentro desta tradição positivista, Austin formula sua teoria imperativa do Direito afirmando que este é um conjunto de ordens respaldadas por ameaças ditadas pelo soberano no exercício de seu poder soberano e legislativo ilimitado.

Hart comparte parcialmente as duas afirmações centrais do positivismo clássico, mas refuta a conclusão de Austin conforme a qual o critério de identificação das regras jurídicas se encontra no hábito dos cidadãos de obedecer a um soberano, uma vez que o Direito, em uma sociedade organizada, não pode ser identificado satisfatoriamente respondendo as perguntas: (1) quem é o soberano?; e (2) quais são as suas ordens? Este critério é adequado para identificar mandatos como as ordens dadas por um assaltante a sua vítima, mas inadequado para explicar a percepção que os cidadãos têm de uma vida social institucionalizada, como a dos sistemas jurídicos contemporâneos.

A juízo de Hart, um dos erros de Austin foi não construir a noção de regra sem a qual é impossível explicar a estrutura e o funcionamento do Direito – que deve ser entendido como um conjunto de regras que formam parte de um sistema jurídico.

Provavelmente, a idéia de que as normas jurídicas formam parte de um conjunto mais amplo, chamado sistema ou ordenamento jurídico, é bastante aceita entre os juristas. Kelsen, nas páginas iniciais de sua obra Teoria geral do direito e do Estado, também afirma que o Direito é um ordenamento, “um conjunto de normas [...] que tem o tipo de unidade a que nos referimos quando falamos de um sistema. [...] Unicamente sobre a base de uma clara compreensão das relações que constituem um ordenamento jurídico, pode-se entender plenamente a natureza do Direito” (Kelsen, 1979, p. 3). Corroborando a assertiva kelseniana e com o intuito de alcançar o seu próprio objetivo, Hart inicia suas investigações por caracterizar os tipos de normas que compõem o ordenamento jurídico.

Para Hart, o ordenamento jurídico é formado por um conjunto de regras que ele denomina de regras primárias e por três tipos de regras secundárias: regras de reconhecimento, regras de alteração/modificação e regras de adjudicação. As regras primárias prescrevem o que os indivíduos podem ou não fazer e quando devem omitir certas ações – queiram ou não –, ou seja, são regras que impõem deveres em sentido positivo e negativo. Já as regras secundárias, ademais de desempenhar distintas funções no ordenamento jurídico, são também o remédio para cada um dos defeitos que, inevitavelmente, apresentam um sistema composto somente por regras primárias, entre os quais se encontram: a falta de certeza, a dificuldade para assimilar as mudanças (sociais, culturais, econômicas, etc.) ocorridas na sociedade e a ineficácia da pressão social difusa que se exerce com a intenção de que se cumpram as normas.

As regras secundárias de alteração outorgam competência a determinados sujeitos para que ajustem – por meio da introdução, exclusão e modificação de normas – a realidade social em que operam. Por sua vez, as regras de adjudicação dão dinamicidade e eficácia ao ordenamento jurídico, pois conferem potestades jurisdicionais – identificam e estabelecem quais são os indivíduos que podem julgar e os procedimentos que necessariamente devem seguir juízes e tribunais.

Com a intenção de manter a distinção de Hart entre regras primárias e secundárias, Hacker e MacCormick propuseram algumas reformulações a esta distinção, mas, dado os contornos deste artigo, cabe destacar que ditas reclassificações reforçam não somente a essencialidade da tipologia das normas apresentada por Hart, mas também o fato de tal tipologia ser, na opinião do próprio autor, ambígua e imprecisa, o que a converte, irremediavelmente, em banco de muitas críticas.

Uma destas críticas aponta para a rigidez de tal distinção e ao fato de que, em determinadas situações, pode ser difícil delimitar quando uma norma é uma regra eminentemente primária ou secundária. Outra repreensão relevante é a de que esta tipologia não incorpora em sua estrutura as normas permissivas. Mas certamente a
crítica mais importante advém do já mencionado debate entre Dworkin e Hart, em que o primeiro acusa o autor em tela de preocupar-se excessivamente com as normas, ignorando os princípios.

A fim de complementar a estrutura fundacional da sua teoria, Hart cria a noção de rule of recognition que pretende ser um remédio para a falta de certeza do regime de regras primárias, bem como o instrumento adequado para a identificação de todo o material jurídico, de modo que o status de uma norma como membro do sistema dependa de que ela satisfaça certos critérios de validez estabelecidos na regra de reconhecimento.

Dita regra, ademais, é uma norma última que subministra um critério jurídico de validez supremo. Neste sentido, todas as normas identificadas com referência a este critério são reconhecidas como normas válidas do ordenamento jurídico. Não obstante, é mister enfatizar que uma norma subordinada pode ser válida ainda que não seja geralmente obedecida, mas uma regra de reconhecimento não pode ser válida e rotineiramente desobedecida, pois ela somente existe como uma prática social eficaz e complexa. Então, uma regra de reconhecimento existirá como questão de fato se, e somente se, é eficaz. Para a verificação do grau de eficácia da regra de reconhecimento se exige, ademais do cumprimento, a aceitação da mesma por
seus destinatários, ou seja, que eles a considerem como pauta correta de conduta.

Em alguns ordenamentos jurídicos a regra de reconhecimento última pode enviar a mais de uma fonte suprema, por exemplo, no caso inglês, aos costumes, às tradições e aos precedentes, porém isto não obsta que, mesmo neste caso, exista apenas uma regra de reconhecimento última. Já nos ordenamentos jurídicos que possuem uma Constituição serão as suas cláusulas os critérios supremos de validez de normas e, conseqüentemente, será ela a fonte última de validez jurídica.

A regra de reconhecimento não só estipula a forma que todas as normas jurídicas devem assumir para serem consideradas normas válidas do sistema jurídico, mas também atribui competência e/ou autoridade a certos sujeitos para que ditem e apliquem as normas jurídicas fixando – com base nos direitos fundamentais dos cidadãos e na estrutura política do Estado – os limites de atuação dos Poderes Públicos. Decisivamente, é a presença da regra de reconhecimento que articula a idéia de sistema jurídico, ou seja, é ela que distingue o Direito de outros sistemas normativos, como a moral, as regras de trato social e as regras de jogo – dado que estes sistemas não dispõem, em seu interior, de uma regra última que identifique toda e cada uma das normas existentes estabelecendo a sua pertinência e validez.

Afirmar que a existência da regra de reconhecimento última está vinculada a uma prática complexa significa afiançar que dita regra é reconhecida/aceita pela maioria dos cidadãos. Esta asseveração induz a muitas perguntas, entre elas: (1.º) Além dos cidadãos como categoria genérica, existe algum outro sujeito que necessariamente deve aceitar a regra de reconhecimento?; (2.º) Podem existir zonas de penumbra nos critérios últimos de validez jurídica contidos na regra de reconhecimento?; (3.º) A aceitação da regra de reconhecimento exige, necessariamente, uma justificação moral? Estas perguntas são importantes para compreender o pensamento de Hart e –em razão de sua complexidade – não serão respondidas em um bloco único, mas sim explanadas no transcurso das próximas seções.

OS CONCEITOS DE EXISTÊNCIA, VALIDEZ E EFICÁCIA JURÍDICA

A despeito de ser habitual na teoria positivista sustentar que a eficácia das normas é condição necessária para a existência dos ordenamentos jurídicos, esta asseveração carece de claridade conceitual porquanto afirma de forma simultânea a existência e a ineficácia de um mesmo sistema de normas e, daí, a necessidade de conhecer o papel que desempenha o conceito de eficácia na teoria jurídica de Hart.

Articular uma concepção do Direito como sistema é um requerimento teórico que possibilita estabelecer critérios para identificar e definir quais são as normas jurídicas que compõem um determinado conjunto normativo ao que normalmente se denomina “ordenamento jurídico”. Na construção hartiana, uma norma somente pertencerá a um ordenamento jurídico se a regra de reconhecimento identificá-la como tal, outorgando-lhe validez. Este é o denominado critério de filiação que pode ser enunciado da seguinte forma: uma norma pertence a um ordenamento jurídico S, se, e apenas se, satisfaz algum dos critérios formulados
na regra de reconhecimento de S.

Para Hart, uma norma existe de fato, quando a conduta por ela estabelecida é geralmente obedecida, mas também resulta óbvio que não existe uma conexão necessária entre a validez de uma regra particular e a sua eficácia, salvo que a regra de reconhecimento do sistema inclua entre seus critérios, como algumas o fazem, a previsão (da chamada regra de desuso) de que nenhuma regra pode valer como regra do sistema se faz muito que deixou de ser eficaz (Hart, 1963, p. 129).

Não obstante tal constatação, Hart adverte que se deve distinguir entre a ineficácia de uma norma que pode ou não afetar a sua validez e uma inobservância geral das normas do ordenamento jurídico. Logo, os enunciados de eficácia de Hart podem ser expressados da seguinte forma: enquanto o enunciado “Existe a norma N” não implica o enunciado “A norma N é eficaz”, o enunciado “Existe o ordenamento jurídico OJ” implica o enunciado “O ordenamento jurídico OJ é eficaz”. Portanto, da regra de reconhecimento não se predica validez, e sim existência – entendida aqui no sentido de existência fática. E para que dita regra exista é: (a) suficiente que ela seja habitualmente obedecida pelos cidadãos; e (b) necessariamente aplicada pelas Law-enforcing agencies do ordenamento jurídico. A obediência dos sujeitos – sejam destinatários ou operadores jurídicos – é, em última instância, a única dimensão da qual se predica a existência de um sistema jurídico. Neste sentido, estará descartada a possibilidade de incluir como outra condição para a validez de toda e qualquer norma jurídica a correção moral do seu conteúdo. A fim de que os destinatários e os operadores jurídicos possam obedecer às normas jurídicas, com independência de que em um segundo momento mostrem-se em desacordo ou não com o seu conteúdo e queiram atuar de forma distinta a prevista na norma, é imprescindível – ainda que Hart não tenha insistido neste aspecto – que estas sejam formuladas de modo que “possam” ser obedecidas, isto é, que cumpram com determinados requisitos, por exemplo, a claridade e a publicidade, pois somente desta forma poderão servir como pautas de conduta e, conseqüentemente, serão capazes de produzir certeza jurídica. Definitivamente, traçar as características específicas da regra de reconhecimento ajuda não somente a distingui-la das demais normas, mas também
a ter uma imagem mais adequada do ordenamento jurídico como sistema normativo.